Máquina de Fazer Pombos



     Hoje é dia 10 de setembro, falta menos de um mês para meu aniversário de 27 anos. Sinto a necessidade de contar uma história.

     Em 2018, resolvi estender minha passagem pela Escola Guignard, onde já havia me habilitado em cerâmica, fazendo uma Habilitação em Escultura. Tinha em mente desenvolver trabalhos relacionando o humano, o animal e a cidade, diálogos que formam uma trama que venho pesquisando e usado como conduíte em alguns de meus trabalhos desde então.

     Em algum momento deste mesmo ano, escrevi Despedida dos Pardais, que foi fundamental para afunilar as ideias que resultariam em meus trabalhos de habilitação. Um deles chama-se Máquina de fazer pombos, que é o ponto central desse redemoinho que me levou a escrever este texto.

     Ao começar minha pesquisa de materiais, comecei a coletar objetos que poderiam ser usados na construção dos trabalhos. Gaiolas antigas, pedaços de ferro e aço enferrujados, madeiras usadas na fabricação de gaiolas e até uma árvore caída que encontrei pelo bairro. Materiais que traziam em si, assim como suas teias de aranha, estímulos sensoriais que traziam à superfície memórias e insights, que me faziam pensar sobre minha experiência de passagem do tempo estando inserido na cidade e na região da cidade onde nasci e cresci.

     Vivi as ruas do meu bairro, assim como os quintais, o suficiente para manter uma boa coleção de cicatrizes. Marcas escuras que a chuva escorre nas paredes, ofendículos de caco de vidro que formam a crista dos muros descascados, tatus-bolinha nos jardins das pracinhas, bancos de tora cortada, plantas crescendo entre os paralelepípedos da calçada, portões enferrujados e pichações que trazem pra hoje muros de casas construídas a muitas décadas atrás. Experiências determinantes no rumo que os trabalhos tomariam.

     Em dado momento escrevi um pequeno texto que seria a cerne da obra Máquina de fazer pombos:


As máquinas de fazer pombos habitam grandes cidades. Ignoradas pelos olhos, ocupam brechas na arquitetura, de modo que ninguém sabe ao certo de onde vieram ou como foram parar lá. Elas trabalham imperceptivelmente, abafadas pelo som de carros, sirenes e vozes. Automáticas, elas funcionam de maneira simples: um pardal é capturado e processado juntamente com um punhado de lixo, dando origem a três pombos saudáveis e prontos para voar.

Você já viu um ovo de pombo?



     A partir dessa ideia ficcional, juntamente a muitos desenhos, comecei a construção da máquina.

     Durante esse processo, minha mãe contou a respeito de um episódio que havia acontecido com meu pai, sobre o qual conversei com ele em seguida. Ele me disse que passou por uma fase muito complicada, quando mais jovem, onde teve que lidar com uma depressão profunda, que o afastou de seus amigos e que fez com que cada vez mais ele deixasse de sair pra se divertir, se atendo apenas à suas responsabilidades de trabalho e  uma das poucas companhias que ele suportava: a de sua criação de pombos. Criava e treinava pombos correio em um pombal improvisado no que seria a garagem da família. Aos seus 27 anos.

     Foi logo depois desse período que ele conheceu minha mãe. Quando nasci já não haviam mais pombos e em determinado momento de minha infância o pombal chegou a ser chamado de atelier de artes do Zé bichinho, que era como meu pai e familiares me chamavam antes de eu crescer e ter o apelido abreviado para Zeba.

     No ano anterior ao início de minha habilitação, meu irmão mais velho e único irmão, passou também por uma depressão severa. Nós quatro em nosso núcleo familiar, já com o ninho desfeito e sem pombos, ficamos muito preocupados durante esse período que durou alguns compridos meses. Meu irmão tinha 27 anos na época.

     Estamos em 2020, o ano da pandemia e do novo normal. Sempre tive medo de epidemias, pandemias e qualquer inimigo invisível transmitido pelo ar. Em março meu mundo se transformou e seres microscópicos se tornaram gigantes em minha mente. Com o início do isolamento social me vi em meio à várias crises de ansiedade e pânico, crises que se desdobraram em uma depressão que em muitos momentos parecia que iria me virar do avesso.

     28 dias para meus 27 anos e estou melhor, mas ainda em tratamento. Penso em todas essas relações, se coincidência ou se genética. Penso na Máquina de fazer pombos como um preparativo inconsciente pro que viera, como um reflexo da experiência do meu pai captado por alguma parte mais sensível de mim. Talvez a máquina devesse realmente funcionar, criar pombos para preencher o vazio dos poleiros da mente.

     É setembro e dois pombos me acompanham. Um deles tem tarja preta.


Edição: Hoje é dia 13 de setembro, faz três dias que escrevi a primeira parte deste texto. 
   Hoje vi pela primeira vez na vida ovos de pombo.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

In vitro, série de objetos em cerâmica de alta temperatura - Memorial