In vitro, série de objetos em cerâmica de alta temperatura - Memorial
O trabalho apresentado a seguir é resultado da pesquisa realizada durante a minha habilitação em cerâmica pelo curso de Bacharelado em Artes Plásticas da Escola Guignard-UEMG, em 2017. Teve como objetivo a criação de objetos cerâmicos cujas formas nos remetessem às mutações genéticas em ratos de laboratório e que levantassem a questão da relação humano-animal e humanidade-animalidade. Apresenta o processo da referida pesquisa, que resultou em uma exposição coletiva na Galeria da Escola Guignard.
Editei este memorial para melhor adaptá-lo ao formato blog.
Para ter acesso à série de trabalhos resultantes desta pesquisa, clique aqui.
Se o animal é o estranho que nós, humanos, tentamos agarrar e que quase sempre nos escapa, ele também é o nosso duplo, o que está aqui, com sua presença inquietante e por vezes assustadora. E a poesia, por ser esse espaço de revelação da outridade, é também o lugar, por excelência, para que a animalidade se manifeste enquanto imagem e inscrição, ainda que provisórias.Maria Esther Maciel (2016)
1. INTRODUÇÃO
A representação dos animais não humanos pode ser notada desde os primeiros indícios da permanência de nossa espécie na Terra. Foram feitas, ao longo da história, por uma infinidade de motivações e objetivos, passando pelo uso da retratação multimídia e simulacro ao uso de animais mortos e vivos, na arte.
A presença da imagem desses animais na arte oscila de época para época, servindo de termômetro para o grau de proximidade do humano com a natureza, Fibicher (2008). Em tempos de maior afastamento, o animal se torna mais frequente em trabalhos artísticos, como se buscássemos uma conexão através das imagens com nossas origens, nossa ancestralidade e, talvez, nossa própria animalidade.
Neste trabalho busco, através da representação cerâmica de ratos de laboratório, levantar questões sobre o afastamento da compreensão de nossa animalidade, como via para a sustentação de relações de objetificação e crueldade com animais não humanos. Faço uso de pensamentos de autores como Dominique Lestel, Jacques Derrida, John Maxwell Coetzee e Maria Esther Maciel, para fundamentar os caminhos que sigo dentro dessa pesquisa.
2. NÓS, ANIMAIS
2.1 HUMANIDADE X ANIMALIDADE
Ao começar o desenvolvimento de minhas pesquisas sobre a temática do animal, me deparei com a questão da humanidade versus a animalidade que nos habitam. Qual ou quais as fronteiras, o limite, o fim da linha para o humano e o começo para o animal em cada um de nós? Essa fronteira é determinada por aquilo que chamamos “natureza” ou aquilo que conhecemos como “cultura”? O rio que separa esses conceitos é profundo e coberto de neblina, onde a maioria de nós navegamos adormecidos. Ao despertar para essa percepção, é improvável que se consiga manter relações com outros animais e pensa-las, assim como pensar nossa relação com nossa própria animalidade, da mesma maneira.
Segundo Derrida, ao atravessar esse rio, ou seja, “ao passar as fronteiras ou os fins do Homem, chega-se ao animal: ao animal em si, ao animal em mim e ao animal em falta de si mesmo” (DERRIDA, 2002, p. 14). Interpreto o animal em falta de si mesmo como o não reconhecimento ou o reconhecimento, porém, como irrelevante, de nossa animalidade.
Em O Animal que logo sou (2002) o autor propõe uma nova perspectiva para pensarmos nossa animalidade: pensa-la a partir do olhar de um animal não humano sobre nós. Ele exemplifica com um momento em que é surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um gato, e ainda denomina esse estado de atenção, inquietude e mal-estar, de encontrar-se sendo visto como animal pelos olhos de um outro animal, como um “animal-estar”. E completa:
Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito “animal” me dá a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir do qual o homem ousa se anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar. E nesses momentos de nudez, diante do olhar do animal, tudo pode me ocorrer, eu sou uma criança pronta para o apocalipse, eu sou o próprio apocalipse, ou seja, o último e o primeiro evento do fim, o desvelamento e o veredito (DERRIDA, 2002, p. 31).
Diante desse olhar, ou dessa troca de olhares, é possível entender a importância da proximidade com animais de outras espécies para a compreensão ou aproximação de nossa animalidade. O olhar de um animal nos traz à superfície nossa própria consciência de também ser um animal. Ao estar cara a cara, olho a olho, com um ser de instintos desnudos, é preciso nos despir daquilo que nos cobre os instintos.
2.1.1 ANIMAL HUMANO X ANIMAL NÃO-HUMANO
Convivemos ao lado de animais em nossas sociedades desde o início da história da raça humana, formando comunidades híbridas onde criamos uma diversidade de tipos de relações com seres de outras espécies.
O abate representa, de longe, a forma mais comum de interação entre humanos e animais. São diversas as justificativas que encontramos para tirar suas vidas ou afetá-los negativamente em função de tirar algum tipo de proveito em benefício próprio, de modo que, com a ausência de reflexão sobre a complexidade desses seres, chega-se ao extremo da crueldade. Essas relações provêm de uma ideia que está entranhada na grande maioria das culturas globais: a ideia de que somos seres superiores a qualquer outra forma de vida do planeta.
O animal não humano é tratado por Derrida (2002, p.29) como “mais outro que qualquer outro”, como forma de expressar a dimensão da alteridade, esse estado que se constitui através do contraste, da distinção e da diferença, existente entre ambos. Expressa essa distância que, acreditamos, vai muito além daquela que possamos manter entre um ser humano nascido ou inserido em uma outra cultura, por mais que esta possa diferir da nossa. Entretanto, dada tamanha complexidade do animal humano, da diversidade cultural aos níveis ou camadas da subjetividade de cada indivíduo, Montaigne (2000), diz haver maior diferença entre um ser humano e outro do que entre um dado animal e um animal humano.
Pelas semelhanças ou pelas diferenças, pelo pouco de conhecimento que detemos ou pela imensidão de conhecimento faltante, é necessário, a princípio de tudo, ter empatia e respeito por nossos companheiros. Como diz o escritor sul-africano Coetzee, por meio da personagem Elizabeth Costello em A vida dos animais, “Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós, nunca segurou nas mãos um animal que luta pela própria vida. (...) todo o seu ser está na carne viva. (COETZEE, 2003, p. 126)”
É a partir desse tipo de pensamento, que nos une em um mesmo patamar de animais intérpretes de sentidos, segundo Lestel (2016), providos da possibilidade de sofrimento físico e mental, em contraste à nossa atual postura perante esses outros, que começo a levantar os questionamentos que me conduziram ao desejo de produzir esse trabalho.
2.2 O ANIMAL COMO OBJETO
O que sobretudo me chama a atenção nesse cenário, é como o ser humano interfere com tanta espontaneidade e de forma tão incisiva na vida de um outro animal, tratando-o como objeto e agregando utilidades que os desviam de sua naturalidade. Despe-se o animal de toda sua natureza, e o insere em meios nos quais sua vida perde o sentido próprio, e passa a servir de ferramenta para que possamos alcançar objetivos humanos.
Dentre essas relações controversas e, algumas vezes, assumidamente cruéis e egoístas, escolhi como tema do meu trabalho plástico/poético o uso de animais de outras espécies como cobaias para experimentações científicas.
Em meio aos tipos de relações ecológicas reconhecidas e nominadas, como sociedade, mutualismo, protocooperação, não há uma categoria onde se encaixe esse tipo de relação. A que mais se aproxima é a chamada sinfilia, na qual indivíduos de uma espécie mantém em cativeiro indivíduos de outra espécie para explorar e se beneficiar do trabalho exercido por eles. Porém, nos casos em que essa relação se manifesta na natureza, a espécie dominante não causa danos aos dominados ou à sua prole, para que assim possam se beneficiar permanentemente. Se essa relação, de uso de outras espécies como objeto de exploração sem que seja dada importância aos danos causados a ela, é mantida exclusivamente entre o ser humano e outros animais, ela se comporta como um selo de qualidade atrás de nosso rótulo de animal superior. Selo que se manifesta no avanço, por meio da transposição de barreiras, dos limites ético-científicos. Na publicação de manchetes como “Cientistas transformaram ratos de laboratório em predadores”, “Cientistas transformam ratos altruístas em psicopatas” ou “Orelha humana é recriada em corpo de rato nos EUA” entre tantos outros resultados alcançados por meio da objetificação do animal não humano, nota-se o exercício da crueldade de animais que se auto elegeram dominantes sobre a vida dos seres que domina.
2.2.1 O ANIMAL COMO SUJEITO
Reconheço a complexidade da discussão acerca da caracterização e tratamento do animal como sujeito e, em consequência, não pretendo neste trabalho alcançar uma conclusão desta discussão, nem apresentar evidências embasadas em pesquisas mais profundas para respaldar minha escolha por tratar os animais não humanos como sujeitos.
Escolho conceder-lhes o benefício da dúvida. Dar voz, através da poética ao que nos é inaudível. Encontrando na expressão visual da arte cerâmica, a mesma potencialidade que elucida Maciel sobre a poesia, ao dizer que:
A poesia tem a potencialidade de se tornar tanto um espaço de aproximação possível com a outridade animal quanto um topos de travessia para o que chamamos de animalidade, essa instância nebulosa que resiste à apreensão pela linguagem verbal. (MACIEL, 2016, p. 107)
Ainda assim, acho importante salientar que, apesar dos avanços de pesquisas em áreas como a etologia, especialidade da biologia que estuda o comportamento dos animais, ainda sabemos muito pouco sobre eles. Além de fatores biológicos que nos diferenciam e nos distanciam desses outros, o mundo é descrito a nós, por nossos sentidos, desde que nascemos, de uma forma muito diferente da que é descrita a eles por seus sentidos. O que nos leva à um distanciamento que acaba tornando impossível afirmar com propriedade sobre o pensamento do animal. Fator que parece imprescindível para a caracterização daquilo que é chamado sujeito. Porém, podemos observar que o animal interpreta tanto o mundo em que vive, como as coisas ao seu redor, e, ainda, interpreta a si mesmo (LESTEL, 2016, p. 134).
Desta forma, somando essas informações às minhas próprias experiências de aproximação com os animais e com minha animalidade, opto por abordar o animal, em minha vida e trabalho, como ser sensível ao invés de recurso ou máquina programada.
3. MEMÓRIAS DO FAZER: DO MINERAL AO ANIMAL
3.1 LENDO PEGADAS
O animal sempre esteve presente. Da profunda condição de ser às pequenas peculiaridades infantis.
Quando filhote, talvez pela afinidade e curiosidade com os companheiros de reino, talvez pela sutil semelhança com alguma espécie mais selvagem, talvez por nascer bicho e virar humano depois ou por aparentar resistência à essa segunda etapa, fui apelidado Zé bicho.
Desde então, o caminho, fortuitamente e instintivamente, sempre tendeu às vias que me levavam à uma aproximação com o animal. Da diversidade de criações de bichos à caminhos espirituais onde havia a exaltação do animal espiritual, do desejo de me formar biólogo ao abandono da faculdade de Aquacultura por conflitos ideológicos em relação ao tratamento dos animais, sempre me senti tocado pelas relações que construímos com esses seres.
Essa noção foi alcançada por mim apenas no ano da concepção desse meu trabalho de Habilitação em Cerâmica. Lendo minhas pegadas notei uma eminente frequência do animal, principalmente como signo, em meus trabalhos plásticos. Foi farejando esses meus próprios rastros que tomei consciência dessas relações que inconscientemente insistiam em vir à tona e, dado o valor que nelas reconheci, determinei (ou foi determinado por elas) que seriam o tema do meu trabalho de conclusão da minha habilitação em cerâmica.
Iago Gouvêa. Sem título. Nanquim sobre papel. 2015
Iago Gouvêa. Sem título. Nanquim sobre papel. 2016
Iago Gouvêa. Como construir um habitat natural.
Cimento, ferrugem, pregos, vidro e bordado sobre tecido. 2017.
Iago Gouvêa. Devir. Bordado em parede. 2017.
Ali estava a mãe com suas crias em agonia, e não lançava sua mirada para os implacáveis muros de pedras, mas para o ar vazio ou, através dele, para o infinito, acompanhando essa mirada com um ranger dos dentes! Se um escravo cheio de horror impotente se encontrou alguma vez perto de Níobe petrificada, seguramente sentiu o que senti dentro de mim quando a alma daquele animal mostrava os dentes para o seu trágico destino. (HOFMANNSTHAL, 1902, p. 05).
Foi este trecho que semeou em mim a primeira semente do que mais tarde seriam meus objetos, ou sujeitos, como prefiro, de estudo e inspiração: os ratos. Nele o autor exprime o mesmo tipo de empatia, com esses seres, ainda que velada, que movimenta o meu trabalho. Quando, enfim, confessa “senti dentro de mim” ele está falando de um sentimento que, tempos após minha leitura dessa carta, em um outro texto, Deleuze e Gattari sintetizam-no de forma que encontro uma identificação plena:
Quando Hofmannsthal contempla a agonia de um rato, é nele que o animal “mostra os dentes ao destino monstruoso”. E não é um sentimento de piedade, precisa ele, menos ainda uma identificação; é uma composição de velocidades e de afectos entre indivíduos inteiramente diferentes, simbiose, e que faz com que o rato se torne um pensamento no homem, um pensamento febril, ao mesmo tempo que o homem se torna rato, rato que range os dentes e agoniza. O rato e o homem não são absolutamente a mesma coisa, mas o Ser se diz dos dois num só e mesmo sentido, numa língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos (DELEUZE & GATTARI, 1997, p. 44).
3.2 LABORATÓRIO
Cada rato foi feito isoladamente, de forma que só quando terminava a modelagem de um que eu começava o outro. Isso permitia uma maior liberdade de tempo para trabalhar com cada um individualmente, já que não teria que me preocupar com o ponto de secagem de um enquanto modelava outro.
Uma vez que a argila branca que eu estava usando ficava bem amarelada quando queimada em alta temperatura, o maior desafio desse trabalho foi encontrar uma forma de manter a superfície dos ratos com a coloração branca sem muito brilho ou branca acetinada. Fiz alguns testes de vidrados para queima de alta, entre eles o branco brilhante, branco matte, matte opaco e branco fosco. Em nenhum desses eu encontrei um resultado satisfatório, tendo sempre algum problema com coloração, opacidade ou textura.
O vidrado que mais se aproximou foi o branco fosco, porém ele resultava em uma textura muito seca e de preenchimento irregular. Comecei então a testa-lo misturado ao transparente alcalino em diferentes proporções. O resultado foi uma coloração branca ótima e uma textura também muito boa, porém, uma grande quantidade de pontinhos pretos, do vidrado branco fosco, veio à tona, impossibilitando assim o seu uso.
Como última possibilidade na qual eu não precisaria ceder a um vidrado brilhante, surgiu a ideia de usar o vidrado branco brilhante e depois usar pintura para porcelana de terceira queima, pigmentos minerais diluídos em óleo de copaíba, de coloração branca. A pintura seria levemente aplicada com uma esponja por cima da peça, de forma que cobrisse o brilho parcialmente. O teste realizado foi um sucesso e logo em seguida fiz as aplicações nos ratos. Foram necessárias duas queimas de alta temperatura para alcançar um resultado satisfatório com o branco brilhante, uma vez que na primeira queima algumas partes das peças ficaram com pouca deposição de vidrado, resultando em manchas de coloração alaranjada.
Além de usar como solução para o branco, usei a pintura de porcelana para atingir as colorações desejadas nas caudas, patas, focinhos, orelhas, olhos e asa.
Ao pintar os olhos de vermelho, sendo última etapa da pintura, vi meus ratos passando de formas inertes a seres que pareciam que a qualquer momento começariam a respirar e se movimentar. Foi impossível não pensar e sentir um incômodo ao dar vida à essas criaturas.
3.3 REFERÊNCIAS ARTÍSTICAS
Neste sub-item apresento dois artistas, um brasileiro e uma estadunidense, que, em suas produções artísticas, utilizam o animal como forma de levantar questões sobre nossas relações com outros animais e com nós mesmos em suas pesquisas poéticas. Foram eles minhas principais referências para este trabalho.
EDUARDO KAC
Nascido no Rio de Janeiro, Eduardo Kac foi pioneiro na arte transgênica e criador de termos como Animano, Bioarte, Biopoesia, Ética Performativa e Sujeito de Arte. Animanos são animais não humanos com material genético humano ou humanos com material genético não humano; Bioarte é a arte que se baseia na manipulação, transformação ou criação da vida (em seu sentido literal, isto é, biológico); Biopoesia é poesia criada para ser realizada in vivo; Ética Performativa são as características das obras de arte que causam tensão ética e estimulam reflexão e debate; Sujeito de Arte é um ser vivo senciente criado por um artista e nascido no contexto da arte. Os termos e conceitos concebidos e trabalhados por ele em sua obra foram de grande importância para minha pesquisa, principalmente ao trazer para o campo da arte questões e discussões relevantes à minha investigação, mais comumente abordadas na ciência.
Seu trabalho com que mais identifico relações com minhas peças cerâmicas é o mais conhecido e talvez mais polêmico, denominado GFP Bunny.
O trabalho se inicia com a inserção de um gene verde fluorescente (GFP, que significa Green Fluorescent Protein) extraído de uma água-viva, no DNA de um coelho. O resultado é Alba, uma coelha que nasce no ano de 2000 e possui como característica exclusiva entre os coelhos, a capacidade de emitir luz verde quando sob ondas de luz negra. A segunda fase deste trabalho inicia-se com o primeiro anúncio público do nascimento de Alba em uma conferência e a terceira fase iniciar-se com a volta da coelha para casa para viver junto à família do artista .
Kac explica que as principais preocupações desse trabalho são:
1. Estabelecimento de um diálogo contínuo entre profissionais de diferentes campos (arte, ciência, filosofia, direito, comunicações, literatura, ciências sociais) e o grande público sobre as implicações culturais e éticas da engenharia genética;
2. Contestação da suposta supremacia do DNA na criação da vida em prol de um entendimento mais complexo do relacionamento existente entre genética, organismo e meio ambiente;
3. Extensão dos conceitos de biodiversidade e evolução de modo a incorporar neles o trabalho meticuloso que se desenvolve no nível genômico;
4. Comunicação interespécies entre seres humanos e mamíferos transgênicos;
5. Integração e apresentação da GFP Bunny num contexto social, interativo e dialógico;
6. Exame das noções de normalidade, heterogeneidade, pureza, hibridismo e alteridade;
7. Consideração de uma noção não semiótica de comunicação como o compartilhamento de material genético através das barreiras tradicionais das espécies;
8. Reconhecimento e respeito público para com a vida emocional e cognitiva de animais transgênicos;
9. Expansão de práticas atuais e limites conceituais da arte para incorporar a invenção da vida. (KAC, 2013, p.274)
Seu trabalho se distância de in vitro quando eu, como artista, faço o uso da representação do animal com a modelagem em material, na criação de um objeto de arte, enquanto ele cria em cima da matéria viva um sujeito de arte. Meus ratos são modelados a partir de possibilidades que vão além das que, por mim, são consideradas éticas. Enquanto isso, a coelha de Kac é o resultado da materialização viva de uma possibilidade dentro de sua concepção de ética, onde ele diz que “os processos da arte transgênica devem resultar em criaturas saudáveis capazes de um desenvolvimento tão normal quanto qualquer outra criatura de espécies próximas” (KAC, 2000, p.256). Esse fato me isenta da responsabilidade sobre a vida de um outro ser, mas mantém, em outros níveis, alguns questionamentos presentes em GFP Bunny.
Alba, a coelha fluorescente (2000)
fonte: ekac.org
Kac e Alba
fonte: ekac.org
BETH CAVENER
Cavener é uma artista estadunidense nascida em California, residente de Montana, que trabalha formas animais em argila e, comumente, animais antropomórficos. Dando forma à grandes blocos de barro posteriormente queimados, faz surgir animais selvagens, que são ocos de matéria, mas preenchidos com sentimentos e psicologia humana. Como ela mesma diz “... emprestei a pureza percebida e a inocência moral da imagem animal e a imbuí de complexidade humana”. Essa representação da humanidade através da forma animal acontece de forma sutil, a mesma sutileza com que tais expressões são manifestadas pelos humanos em seu comportamento corporal em momentos de exteriorização sentimental ou apatia.
Suas formas e títulos dançam sobre os limites da animalidade e da humanidade, dando vida e acrescentando os riscos do humano sobre presas e predadores. São criados momentos de tensão onde as esculturas transparecem suas próprias lutas internas e externas.
Beth Cavener em seu processo
fonte: followtheblackrabbit.com
Beth Cavener, A Rush of Blood to the Head (2009)
fonte: followtheblackrabbit.com
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A forma como nos relacionamos com os animais é resultado de uma histórica construção cultural, originada nas primeiras necessidades do homem. Em algum momento, principalmente na cultura ocidental, essas interações levaram à autopromoção do humano como ser superior.
Atualmente, possuímos conhecimento, recursos e motivos suficientes para repensar essas relações. Assim como a sociedade tem se empenhado em discutir outras construções culturais como o machismo, o racismo e a LGBTfobia, nossa relação com o animal também precisa ser amplamente discutida, não só no meio acadêmico como popularmente. É necessário reconhecer nossos privilégios individuais e pensar como eles refletem nas vidas de indivíduos marginalizados, inclusive daqueles considerados mais outro que qualquer outro, assim como escreve Maciel:
[...] o conceito de sujeito construído historicamente se configura como uma rede de exclusões, uma vez que não apenas os animais são impedidos do acesso ao ‘quem’, como também vários grupos de seres humanos considerados não sujeitos, renegados à condição de outros de nossa cultura e potencialmente não merecedores de consideração legal e moral. Esse ‘quem’ é, inclusive, quem decide a vida ou a morte dos não sujeitos, quem os submete ao sacrifício. (MACIEL, 2016, p.118)
Os ratos de in vitro carregam em seus corpos mutantes a tentativa de levantamento da questão do humano x animal. Expressam possibilidades catastróficas do não pensar nossas relações com aqueles que não conhecemos, nossa relação com nós mesmos como humanos e nossa relação com nossa própria animalidade.
Esse trabalho me foi muito generoso. Aprendi muito por meio dos desafios apresentados pela cerâmica e seus mistérios. Tomei conhecimento que a humanidade que em mim habita pode ser uma chave para a disseminação de uma melhor convivência com nossos companheiros. Amadureci meus pensamentos sobre meu lugar como animal em um mundo repleto de outros animais.
Sobre aqueles dos quais muito pouco sabemos, faço de Derrida minhas palavras: “Nada poderá tirar de mim, nunca, a certeza de que se trata de uma existência rebelde a todo conceito. (DERRIDA, 2002, pg. 26)”
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAVENER, Beth. Animal Body, Human Space. Disponível em: < http://www.followtheblackrabbit.com/about/> Acesso em 26 de outubro de 2017.
COETZEE, J. M. A vida dos animais. John Maxwell Coetzee; tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Em inglês: COETZEE, J. M. The Lives of Animals. Princeton: Princeton University Press.
DELEUZE, Giles e GATTARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 4. Félix Gattarri e Giles Deleuze; tradução Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Jacques Derrida; tradução Fábio Landa. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
FIBICHER, Bernard. Comme des Bêtes (catálogo de exposição). Lausanne: Musée Cantonal ds Beaux-Arts, 2008, pp. 8-XX.
HOFMANNSTHAL, Hugo von. The Letter of Lord Chandos. Disponível em: < http://sites.nd.edu/moderncrises/files/2011/09/The-Letter-of-Lord-Chandos.pdf> Acesso em 22 de outubro de 2017.
KAC, Eduardo. Telepresença e Bioarte: Humanos, Coelhos & Robôs em Rede. Eduardo Kac; tradução, Antônio de Pádua Danesi... [et al.]. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
LESTEL, Dominique. Dominique Lestel: entrevista. Entrevistadora: Maria Esther Maciel: 2012. MACIEL, Maria Esther. Literatura e Animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
MACIEL, Maria Esther. Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
MONTAIGNE, Michel. Apologia de Raymond Sebond. In.: Os pensadores. Michel Montaigne; tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000. v. 1
Amo sua Arte, sensibilidade, e seu olhar empático aos nossos companheiros de existência. Parabéns! Sucesso!
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